Quando foi que a gente parou de fazer só uma coisa por vez? (#23)
Almoço com story, descanso com notificação e chamo isso de lazer
Antes de começar, uma musiquinha pra relaxar… (OBS.: não me responsabilizo por nenhuma letra que possa te afetar).
Sei que esse título pode soar meio contraditório quando eu literalmente escrevi isso aqui há uns dias:
E, de fato, a gente nunca vai fazer uma coisa só, mas eu te garanto que os temas são diferentes.
O que eu quero abordar aqui nesse texto não é nem com foco no trabalho, mas sim, no nosso dia a dia, quando fazemos coisas normais, mas que se tornaram uma grande otimização de tempo sem percebermos.
Postei nas notas há uns dias sobre como eu tava viciada em um aplicativo de pintura que disponibilizava centenas — se não milhares — de desenhos da Disney. Quando comentei com uma amiga, ela disse que adorava esse app e que sempre pintava os desenhos enquanto tava assistindo série.
Fiquei pensando “caraca, eu jamais conseguiria fazer algo do tipo”. Sabe criança quando come assistindo desenho, que ou ela se concentra na colher que tá sendo apontada pra ela ou na luta das Meninas Superpoderosas contra o vilão? Sou assim.
E aí, outro dia, recomendei um filme pra um amigo e, dias depois, ele veio comentar que tava assistindo. As mensagens dele estavam frequentes no grupo, eu tava vendo tweets sendo feitos, então fui perguntar “tá vendo agora?” e ele respondeu que sim.
Foi daí que veio a reflexão pra esse texto:
Faz muito tempo desde o dia que consegui assistir a um filme ou episódio inteiro sem colocar a mão no celular pelo menos uma vez.
O pior de tudo, é que eu sempre pego o celular pra comentar no Twitter sobre o que tô assistindo, me distraio na timeline e, quando noto, já tô lá há 20 minutos.
Quando to almoçando, não consigo simplesmente saborear a comida, prestar atenção no que tô fazendo ou seja lá o que for, eu preciso estar assistindo algum vídeo pra me tirar do tédio, quase como se me alimentar fosse uma perda de tempo, quando eu poderia estar fazendo algo melhor ou mais produtivo.
Escoro meu celular em alguma coisa, coloco o Tiktok na rolagem automática e só assim começo a almoçar.
Porém, também tem mais uma camada nisso tudo: eu evito ficar muito nas redes sociais, então momentos no transporte público, quando tô esperando algo ou não fazendo nada — que não é bem o caso da alimentação, mas eu considero como se fosse —, pego esse tempo pra me atualizar do que tá acontecendo.
E é assim que eu desaprendo a fazer uma coisa por vez.
Tem gente que recomenda algumas séries com o conceito de “séries que você pode assistir enquanto pinta a unha” e, de novo, eu jamais seria capaz disso. Alguma das coisas eu vou fazer de um jeito completamente porco.
Fiquei tão intrigada com isso que fui pesquisar mais sobre, pra entender se eu é que tava errada ou se realmente o cérebro poderia captar melhor os conteúdos quando não estávamos 100% focados neles.
O que eu descobri foi que:
Ele não foi feito pra multitarefa do jeito que a gente acha. O que rola é um “troca-troca” rápido de atenção chamado task-switching. Toda vez que você alterna entre série e celular, o cérebro faz um mini reboot — o que gasta energia e pode até prejudicar a retenção de informações. É tipo um alt+tab, sabe?
Só que...
Foco profundo é difícil e desconfortável
Se concentrar 100% em uma só coisa exige esforço cognitivo. Quando o cérebro tá focado em algo, tipo só assistir à série, ele pode entrar num modo meio inquieto se não estiver ultra engajado. Aí ele pensa: hmmm... será que tem algo mais interessante no Instagram? Nos e-mails? No joguinho?
A gente se acostumou a níveis altos de estímulo o tempo todo, e ficar parado/só fazendo uma coisa parece “pouco”. Mas o efeito colateral é que a gente se cansa mais, se distrai mais fácil, e às vezes sente que não aproveitou nada direito.
Parece que viver no piloto automático virou sinônimo de ser eficiente. A gente começou a valorizar demais a produtividade até mesmo nas horas que teoricamente deveriam ser leves. O descanso virou multitarefa. O lazer virou pano de fundo.
A gente tá a ponto de parar num vídeo de “almoce comigo” durante o almoço — isso é se já não acontece, né…
Quando foi que ver um filme passou a significar estar na mesma sala onde um filme tá passando?
A real é que nosso cérebro se acostumou com a ideia de estar sempre sendo estimulado. Um feed nunca termina, um story puxa outro, a notificação nunca espera. E no meio disso tudo, esquecemos de como é fazer só uma coisa por vez — mergulhar na experiência sem dividir a atenção com mais cinco.
Mas tem algo legal (e meio revolucionário) em tentar voltar pra isso. Em prestar atenção de verdade. Em assistir uma série com o celular virado pra baixo ou em outro cômodo. Em andar na rua sem estar respondendo e-mails do trabalho. Em escutar uma música de olhos fechados.
Não é sobre virar monge zen ou fugir da internet — já falei sobre isso em outra news e sei que tem muito mais camadas do que simplesmente sair. É sobre reensinar o nosso corpo a sentir prazer no simples. No inteiro. No agora.
Fazer uma coisa por vez não é ser menos produtiva. É ser mais presente.
Então, por que você não aproveita um feriado ou final de semana pra fazer esse exercício? Liga pra alguém e se concentra na conversa em vez de ficar na call e no Instagram; vê uma série sem pausar a cada 3 minutos pra mexer no celular; estuda sem ter a aba do Whatsapp aberta; se concentra plenamente na atividade que você tá fazendo e depois reflete sobre como se sentiu.
Não tô dizendo que você vai sentir a alma transcender e pode ser que no começo você até sinta um pouquinho de culpa por parecer que tá perdendo tempo fazendo só uma coisa sendo que poderia estar fazendo três. Só tenta.
Pode ser que não faça diferença porque seu cérebro tá tão dopaminado que vai ser quase como uma abstinência. Mas vai que faz.
Obs.: isso não é uma crítica pros meus queridos amigos que pintam enquanto assistem série ou que ficam no wpp enquanto veem filme, é uma crítica geral (inclusive a mim). O mundo tá acabando, sim, mas vamo com calma, porra!
Recomendações de séries pra você assistir enquanto NÃO faz mais nada além disso:
E se você se interessou pelo assunto, o estudo “O cérebro em multitarefas” fala um pouco mais sobre isso. Você pode acessar clicando aqui.
sobre a impossibilidade real da multitarefa, é uma reflexão importante!!
nosso cérebro não foi feito para dividir a atenção, e essa constante troca de foco acaba prejudicando nossa concentração e qualidade das experiências. Valorizar o ato de fazer uma coisa de cada vez, com atenção, é algo necessário para resgatar a profundidade do momento, especialmente numa rotina marcada pela pressa e excesso de estímulos
Uma coisa que tenho tentando fazer é ler (livro físico) mais e usar menos celular. Deixo sempre um que estou lendo ao lado da cama ou no sofá e tento deixar o celular longe de mim rs
Na tentação do tédio, o livro tá mais perto! Tenho percebido inclusive minha melhora na imersão da leitura.